29 de dezembro de 2007

Presépio Vivo

Depois da gritaria da velha professora e do nervosismo da sua ajudante nervosa e com cara de sofredora, arrumaram todas as crianças como era devido. O espetáculo começou.

Começou com uma dança, só de meninas, que eram anjos, mais ou menos sincronizadas, sorrindo muito. A professora, esta mais jovem que as outras duas, que provavelmente havia ensinado a dança paraas meninas, dançava junto, para que elas não se perdessem na coreografia e quem esquecesse de algo pudesse copiar. A velha professora, em seguida, mudara drasticamente de sua voz irritada e irritante prara uma voz doce e sonhadora, ainda irritante.

A confusão toda começou quando nasceu Jesus.

Havia pastores espalhados por todo o jardim e, numa pequena cabana, aprontada para o espetáculo, estava Maria, José e o menino Jesus. O microfone da velha narradora falhou e ela mandou que começasse uma dança enquanto ela ia buscar outro. José saiu correndo da cabana porque dois dos reis magos, que ainda não deveriam ter entrado em cena, queriam lhe bater. A professora da dança foi acudir. Soltaram a música que devia substituir a narradora e todos os pastores e anjos puseram-se a dançar sem a professora. Uma linda menina de vestido rosa, a menor das crianças depois de Jesus, girava sobre si mesma, compenetrada, enquanto todas as outras giravam em torno de uma estrela do meio do jardim.

Maria começou a gritar pelo José. Ele voltou com a professora e os dois reis. Os três choravam. O terceiro dos reis entrou trazendo, sozinho, ouro, incenso e mirra. Entregou a Jesus. Maria começou a chorar porque queria amamentar Jesus e não a deixavam. A professora narradora não conseguoiu achar o microfone e voltou desesperada ao jardim.

Tia, o menino Jesus fez cocô.

A platéia começou a rir. Ninguém entendeu quando todas as crianças correram, desesperadas, e atravessaram a platéia. Até que viram que vinha trazendo o microfone que ninguém mais achou, tentando não ser visto, o Papai Noel, com o rosto mais vermelho que sua roupa. O show terminou.

8 de dezembro de 2007

Catorze

Moravam numa casa amarela, numa rua que descia desde o centro da minúscula cidade até um rio no seu limite. Dava para ver de lá a estrada, única entrada e saída do lugar. A casa não era pequena. Acabou ficando apertada com cinco crianças. No entanto, alguém sair e desapertar deixaria um vazio compreensível.

Os cinco se alternavam em sexo e idade. O rapaz mais velho, a menina que acabara de entrar numa fase mais madura de sua adolescência. outro menino nos seus doze anos, uma sardenta aos dez e o caçula que completava, naquele dia, sete anos.

Ok, primeiro o café da manhã, depois a surpresa, a mãe.

Seu presente está lá fora, o mais velho cochichando.

No fundo ela sabia que não haveria café da manhã àquela hora para o seu pequeno sonhador naquele dia. Talvez uma hora mais tarde, quando ele viesse pedir pra ir mais longe.

Correu, abriu a porta dos fundos e soltou um 'UAU'. Todos, claro, se aglomeraram na porta para ver de que se tratava. A surpresa foi para a mãe do menino. Quando ela se aproximou da porta viu que a bicicleta nova que devia ser o motivo de toda a efusão estava despercebida, no canto onde a deixara. O entusiasmo do menino devia-se a um animal que estava olhando atônito seu pequeno observador na área da casa.

Obrigado, mãe!!

Um carneiro. A metade mais jovem dali não se preocupou em imaginar se aquilo era comum. Ao invés disso, escolheram um nome.

Vou chamá-lo de Catorze.

O carneiro Catorze nunca viu seus antecessores, porque estes não existiram. O nome era apenas rendimento da estranheza do aniversariante.

A mãe tratou de abrir inquérito para resolver o mal entendido e mas não havia sido nenhum dos irmãos o autor daquela 'brincadeira'.

Se não foi você, alguém me deu. Agora o Catorze é meu.

Catorze e o menino fizeram uma bela amizade. No entanto os pais estavam irredutíveis. Ter um carneiro era muita responsabilidade para o menino. E antes que argumentação dos irmãos começasse - todos se propuseram a ajudar a cuidar do mascote - o dono apareceu.

Foi com lágrimas que se despediu do bicho, e talvez com uma promessa em segredo. O menino estava inconsolável, mas essas coisas de criança passam. E enquanto a família retratava o incomum incidente da data, algum observador pensava como podia trazer tanta alegria ter um carneiro por um dia.

2 de dezembro de 2007

Muito longe

Edilson Adilson era um rapaz preocupado. Suas preocupações iam do início ao fim do telejornal. Preocupava-se com a violência mostrada no país e preocupava-se com a futilidade do jornal em mostrar as habilidades do cavalo Aquiles. Com a roubalheira e os escândalos políticos e com a falta de chuvas. E com a falta de ética em qualquer lugar. A falta de ética, pensava ele, era o mal que alicerçava todos esses problemas.

Algumas coisas deixavam Edilson Adilson revoltado, outras o deixava com medo, e triste, claro. Essa mistura de revolta, medo, apreensão, tristeza e desapontamento com as pessoas era uma tormenta que o fazia estar sempre com o humor diferente. Mas não era sua culpa, sentia aquelas coisas e não podia evitar sentir.

Um dos entraves mundiais que não saíam da cabeça de Edilson Adilson era a fome, claro. Quando pensava na fome o que ele fazia era chorar. Aquela imagem que vinha-lhe na mente machucava. Pensar em pessoas sofrendo por conta do egoísmo do mundo. Huh, se ele tivese algum poder pra mudar isso! - ...mas não tinha. Era só um funcionário do governo com influência abrangindo uma sala de cem metros quadrados de extensão. A África tem trinta milhões de quilômetros quadrados. Estava fora do seu alcance.

E Edilson Adilson só podia sofrer com isso. Tentava se informar o máximo possível. Documentários, reportagens, filmes, tudo o que denunciasse esses problemas mundiais ele procurava ver e divulgar, pra que seus amigos pudessem também estar cientes do que acontece fora de seus universos pessoais. Pena que Edilson Adilson não pudesse, ele próprio, ajudar.

Todos os dias, a caminho de casa ou do trabalho, Edilson Adilson ia pensando nisso, e remoía-se, e levava como dava, conhecendo o sofrimento mas sem poder desfazê-lo. E tudo o que pudesse fazer, com as suas condições, mesmo que alcançasse de alguma forma o sofrimento do outro lado do mundo, seria apenas paliativo, e essa impotência o machucava ainda mais.

Na rota casa-trabalho Edilson Adilson passava por ruas cheias de lojas, cheias de anúncios, e cheias de gente. Mas não prestava atenção nestas coisas porque isso o irritava. A futilidade dessas coisas o irritava e ele preferia seguir pelo caminho pensando em todas as coisas que o afligiam. E ele não via que no meio daquela gente havia também gente no chão, em cobertores rasgados e sujos. Gente numa situação não muito diferente da gente com que ele se preocupava. Toda aquela gente bem ali no seu caminho.