10 de dezembro de 2008

Analogia

Certa vez ouviram uma velhinha ralhar, escandalizada, com uma mãe que passava com dois iguais: "Ô minha filha! Os meninos são gêmeos! Têm de estar vestidos de igual!"

Tem a vantagem de poder pregar peças, e tramavam algumas naquele instante. E as duas senhoras que passavam não ouviram a resposta da mãe e não souberam dizer se foram percebidas. De verdade, a velhinha era uma exceção na opinião geral. Quando pequenos há alguns que acham bonitinho os gêmeos andarem vestidos iguais, ou de tom parecido, mas conforme vão esticando, o bonitinho diminui. Nas bocas de alguns chega a ridículo. A retórica, em geral, rodeava a construção da identidade própria ou, já em ponto de crítica, a falta de personalidade.

A maioria culpava a mãe das duas. Elas não. Sabiam que, desde cedo, tiveram consciência de que as gêmeas eram, afinal, duas pessoas distintas que tiveram a sorte de serem gêmeas. E quiseram continuar se vestindo igual. E se uma sujava a roupa, as duas tinham de trocar. E às vezes passavam tempo decidindo o que iam vestir. Hoje, alguém queria usar verde, e a outra marrom, e discutiam à exaustão quando não concordavam, mas ambas não abriam mão de se vestir igual. E quando chegavam a um consenso, voltavam a discutir um novo impasse.

Ainda tinham de lidar com inconvenientes, como pessoas que insistiam em presentear as irmãs com roupas diferentes, em datas como o natal e o aniversário. Os presentes eram ou completados ou ignorados. Os inoportunos se tornavam vítima de alguma confusão futura.

Confundir as pessoas era uma disposição permanente nas monozigóticas. E ainda que as manifestações de reprovação persistissem, elas encaravam com bom humor todos os efeitos dessa determinação. Naquele dia, o episódio da estrepitante senhora, elas completavam 62 anos de uniformidade.

24 de agosto de 2008

Tarde de bicicleta

Uma ida ao supermercado com a bicicleta. Uma tarde de bicicleta com os sons de uma avenida superficialmente movimentada, como a avenida de uma cidade pequena. Na descida o menino mudou de marcha. Fez a curva e freou.

Havia um homem deitado na calçada, em frente a uma barbearia lotada de gente. Ele tinha uma barba grande e grisalha, os cabelos crescidos para fora do boné que usava, de um time de futebol. Estava sem camisa e usava uma calça jeans suja e gasta, com um par de botinas amarelo sujo, também muito surradas.

O menino ajoelhou ao lado do bêbado, puxou sua mão e chamou. Depois no rosto. Sentou sobre o peito do homem e procurou nos bolsos da calça. Desceu e forçou a mão por baixo para ver os bolsos de trás. Dali tirou uma carteira fina, simples, com apenas dois compartimentos e a capa com nome e número de um candidato a vereador. Dentro havia apenas um documento e uma fotografia.

- Ei, moleque! – ouviu chamar.

Uma camionete encostou e uma mulher de cabelos brilhosos e boca larga, ao lado de um motorista de sobrancelhas pontudas que segurava sua mão, tornou falar.

- O que você ta fazendo, moleque? Que vergonha, se aproveitar que o homem tá bêbado pra tirar dinheiro.

Ele ficou em pé.

- Não, ele é meu pai.

O menino olhou o homem no chão, devolveu a carteira ao seu bolso, pegou a bicicleta e continuou o caminho para o supermercado. A camionete já tinha arrancado. Era uma tarde como outra qualquer.

8 de julho de 2008

Um Beijo

Havia um cenário colorido e saturado. Uma grama muito verde e um sol amarelo como em desenhos de crianças. Havia hortênsias e girassóis. Um banco azul. Um vestido alaranjado, uma camiseta roxa, uma calça verde. O dia também estava para pássaros e borboletas. Havia um magnetismo primaveril desenhando as impressões sobre aquele ambiente.

Havia um gafanhoto e um copo vermelho que ele tinha trazido. O gafanhoto estava sentado sobre o copo vermelho. Ao lado, um pote amarelo com o sorvete de maçã verde que ela mesma tinha feito. Ele se esticou para apanhar o sorvete, mas se assustou com o gafanhoto. Isso criou entre os dois uma proximidade física não experimentada antes.

Houve alguns segundos de imobilidade. Embora ambos tenham respirado apreciavelmente, o tempo pareceu não passar. A distância de antes não conseguiu se refazer e, na presença do gafanhoto, eles se beijaram.

Foi um beijo influente e determinante. Nesse instante um panorama de informações visuais e auditivas ficou sensivelmente claro. Como uma orquestra mapeada, a natureza se apresentou. Foi um beijo virtuoso. Se um deles fosse um sapo, haveria conseqüências incríveis.

17 de abril de 2008

Veneza

Seria nossa primeira grande viagem juntos desde que começamos a namorar. E deveria ser a mais empolgante de nossas vidas. Digo deveria não porque não tenha sido, mas porque os sentimentos que circundaram os passeios, durante aqueles dias, modificaram um pouco a idéia principal da viagem.

Era algo que tínhamos em comum. O destino preferido. Nas conversas do tempo do colégio, muitos ficavam comparando as vantagens de cada lugar. Roma, Berlin, Paris, Londres, seus pontos turísticos, o clima, o idioma, as pessoas. Eu nunca pensei duas vezes. Veneza era minha paixão.

Quando finalmente aconteceu, um efeito não foi previsto. Enquanto você admirava arquitetura da cidade, eu preferia o brilho de uns olhos vislumbrados e exuberantes de felicidade. Enquanto você atentava para os adornos e a decoração da Catedral de São Marcos, que eu tanto havia especulado, eu estudava suas feições satisfeitas ao olhar cada detalhe. Enquanto estávamos sobre a Ponte de Rialto e você olhava o horizonte, eu só podia olhar para o lado e sentir um imenso prazer em ver seu contentamento. A cidade e os passeios ficaram em segundo plano.

Posso afirmar convicto que fiquei realizado com a viagem dos meus sonhos. Mas para mim o espetáculo foi outro.

15 de abril de 2008

Pausa

Como quando a gente gosta muito de uma roupa mas não consegue tirar uma mancha. Ele não esperava que por isso não fosse continuar usando.

É complexo lidar com seres humanos, eu sempre achei. Mas às vezes acontece essa auto-redução a matrizes muito simples.

Foi quando, pela primeira vez, não foi admoestado, que ele se resolveu. Não que isso resolva com qualquer um, mas já é interessante que funcione assim com alguém, uma pessoa que seja. Basicamente foi uma queda, longa e penosa. Sentir que alguém que sempre estava ali, ao lado, disposto e preocupado, desistiu de você. Um ponto: o egoísmo desse sentimento não era insconsciente, mas não é isso que é pra ser discutido agora.

Sempre tendia a descrever essas sensações de desespero, angústia e falta como espasmos, compressões e orgias entre seus órgãos internos. Vísceras em agonia. Dessa vez era só oco. Uma falta de tudo. Aliás, havia luz. Uma luz inexpressiva, enigmática.

Descobriu que não havia maior desgosto que não ouvir a música que deve vir com o silêncio.

8 de abril de 2008

Fissão

A primeira coisa que reparei foi a boca. Sempre achei bocas mais expressivas que olhos. Reparava no seu formato, e nos formatos que assumia. E como ela se mexia. Com o sorriso, a mastigação, a dicção, e até os movimentos supostamente sem propósito. E o queixo, que é meu particular fascínio. Depois, os olhos. A cor, que tantos outros têm igual, era única. A vivacidade e a jovialidade, ou a preguiça e a ressaca expressa neles. Os cílios, as sobrancelhas e suas texturas. Podem rir de mim, mas até o branco dos seus olhos eram especiais.

Quando tudo começa a ficar tão perfeito assim a sensatez já se foi.

Acabei com o rosto. As máscaras. As bochechas, as orelhas, o nariz, o cabelo, a nuca, e todas as combinações expressivas. E as aparências. E as fotografias. A voz, o vocabulário. E as opiniões. Daí as mãos. Braço e antebraço. E explicações. Os dedos, as unhas, as linhas, as articulações. Os movimentos, os rápidos e os lentos. E tudo que tocava. As depreciações e as apreciações. As palmas e os estalos. As aprovações, as posições. E então o andar. E as disposições. E as pernas, o dobrar dos joelhos, os ombros, a cintura, o bumbum e tudo o mais que há de bom. E os gostos, e as tensões. E as intenções. E o vestir. E as ações e as preparações.

E o existir.

Estranho quando se toma liberdade de fazer planos pra outra pessoa. Há quem diga que o amor é egoísta, e que não enxerga deformidades, e mil teorias mais.

Às vezes me pergunto se um diagnóstico precoce evitaria alguma coisa. Ou se alguma coisa só se evita quando realmente não há tanto potencial. Mas pra quê sensatez?

Eu acho que o amor é cego, sim. Aliás, acho que o amor deve ser cego.

28 de março de 2008

Bem-te-vi

Uma mulher empurra a porta do quarto gentilmente e entra e observa. Acaba de amanhecer, nota-se no verde dos sons do lado de fora. No berço, o menino está sentado, com o dedo apontado para cima. Os dois se olham. As cortinas já tinham sido abertas. A luminosidade que entra pela janela dá conta do quarto todo. Há um clima de paixão no ar. Pelo existir. Pelo dia que começa. Peperri, ele diz. Levanta as sobrancelhas e comprime a boca num ar de extremo interesse e olha pela janela. A mulher sorri uma mistura deliciada-satisfeita. Pulsa e se desmancha. Ele retribui o sorriso. Escuta de novo. Se espanta, sorri e repete: peperri, peperri.