12 de janeiro de 2008

Dicotomia

Irmãos. Ela sentada numa cadeira, com uma revista nas mãos. Ele atrás, com uma escova e um secador.

Ele: Olha! Que cabeça eu tenho... Olha do que fui me lembrar! Mês que vem é meu aniversário.
Ela: Vou te ignorar.
Ele: Meu aniversário... Que interessante!
Ela: Ai! Cuidado com essa escova! (...) Vai ficar bem bonito, não vai?
Ele: É... Pode ser...
Ela: OK. O que você quer ganhar de aniversário?
Ele: Meus 18 anos de volta.
Ela: Não é tão mau fazer 19.
Ele: É mau perder os 18.
Ela: Você não perdeu. Aproveitou deles por um ano.
Ele: Não é o bastante.
Ela: Ai! Você não sabe usar um secador de cabelo?
Ele: Eu sei fazer funcionar.
Ela: Nem parece que é gay.
Ele: Não diga.
Ela: Esse é mais um joguinho pra ver quem irrita mais quem?

(...)

Ele: O que você está fazendo?
Ela: Arrumando meu cabelo.
Ele: Não, isso eu estou fazendo. O que você está fazendo?
Ela: Eu estou lendo.
Ele: E...
Ela: Anotando.
Ele: Pra...
Ela: Pra ter anotado quando eu precisar.
Ele: Na própria revista...
Ela: Bem observado.
Ele: Por que precisaria...
Ela: Eu estou fazendo um teste.
Ele: Que tipo de teste?
Ela: Um testede personalidade.
Ele: Que tipo de teste?
Ela: Um tipo engraçado.
Ele: Eu fiz um semana passada que dizia qual x-man eu sou.
Ela: Aposto que você é o professor Xavier.
Ele: Que tipo de teste?
Ela: Por que você toma tanto café?
Ele: Porque o cara da propaganda toma café na praia com uma gostosa do lado e eu quero ser igual a ele.
Ela: Ele diz qual das estações do ano eu sou.
Ele: Parece um bom teste.
Ela: Tio Johan nasceu e morreu no inverno. Ele com certeza era um inverno.
Ele: Tio Johan não foi o terceiro marido da Tia Salete?
Ela: Esse aí.
Ele: Ele passou a vida toda na Finlândia.
Ela: Mas ele nasceu e morreu no inverno. Morreu um dia depois que nasceu.
Ele: 79 anos e um dia depois que nasceu.
Ela: Existe um x-man gay?
Ele: Não, mas existe um que arrumaria seu cabelo sem precisar do secador.

(...)

Ela: Não pode ser.
Ele: O quê?
Ela: Seu presente. Escolhe outra coisa.
Ele: Então quero meus 17 anos de volta.
Ela: Tá bom, então eu escolho alguma coisa.
Ele: Quero uma viagem. Pra Finlândia.
Ela: Visitar o túmulo do seu tio?
Ele: Fazer um curso de cabeleireiro.
Ela: O que você quer?
Ele: Uma moto.
Ela: Outro.
Ele: Um piano.
Ela: Outro.
Ele: Uma adega.
Ela: Outro.
Ele: Uma máquina de café expresso.
Ela: Outro.
Ele: Você não quer me dar nada que eu queira.
Ela: Isso não vai funcionar. Eu posso ficar horas jogando seu joguinho...
Ele: Quero trazer a vó pra passar uns dias com a gente.
Ela: Desisto. O próximo que você disser é seu.
Ele: Um gato.
Ela: Outro.
Ele: Está decidido.
Ela: Você não vai trazer um gato pra dentro da nossa casa.
Ele: Trago amanhã.
Ela: Seu aniversário é só mês que vem.
Ele: Amanhã de manhã.
Ela: Eu escolho o nome.
Ele: Sem chance.
Ela: Então vou vestir ele de vez em quando.

(...)

Ela: Olha do que fui me lembrar! Eu também faço 19 anos no mês que vem. No mesmo dia que você.
Ele: Esquece, comigo não vai funcionar.
Ela: Você é o professor Xavier, não é?
Ele: Sou o Ciclope.
Ela: Não é não. Você é o professor.
Ele: Sou o Ciclope. Na primeira tentativa. Respondendo honestamente.
Ela: Que droga! Eu sou uma primavera, definitivamente.

6 de janeiro de 2008

Cinco Minutos

Corri meio quarteirão até encontrar abrigo em frente a um aviário. Uma senhora, negra, os cabelos armados e os dentes um pouco tortos já estava ali, com um carrinho de bebê.

Você sabe que horas são?

Respondi.

Tomara que essa chuva passe logo.

É.

Eu saí só pra dar uma volta com o menino. Tenho que voltar logo porque o pai vai passar pra pegar ele. Eu cuido dele. O nome dele é João Eduardo. Andei dois quarteirões e ele já tinha dormido. Parece que tá ficando mais forte. A chuva. Eu tenho um guarda-chuvas aqui mas com essa chuva iria molhar o carrinho do mesmo jeito. Você mora aqui perto?

Na rua de trás.

Eu moro ali pra frente, perto daquela creche. Eu trabalhava na creche, mas precisei sair. Sempre gostei de criança.

Eu também gosto.

Viu o acidente que deu ali perto no outro dia que choveu?

Não.

Foi feio. Uma moto e um carro, no cruzamento. Ninguém daqui de perto. Chuva é um perigo pra acontecer essas coisas. Se bem que não precisa de chuva pra acontecer também, né.

Verdade.

Tinha uma menina linda na época que eu trabalhava ali. Na creche. O nome dela era Clara. Uma tragédia, coitadas. Morreu ela e a mãe. Tavam na estrada, o carro perdeu o controle e bateu de frente com um caminhão. As duas morreram na hora. Às vezes não dá pra entender. Dá um cinco minutos e tudo muda. Em coisa de cinco minutos nossa vida dá uma volta...

Nossa!

O pai tá inconformado até hoje. Era ele que buscava a menina todo dia na creche. 'Cadê minha princesinha?', ele dizia. Ela era a princesinha dele mesmo. Eles mimavam bastante a menina, parecia. Ela queria ser bailarina. Vivia dançando, o dia todo. E não comia direito, pra não engordar, já naquela idade. Ela era meio metidinha. Toda pessoa bonita demais é meio metidinha. Ela nem brincava com as outras crianças. Não queria se sujar. Odiava terra. Coitada! Disseram que no acidente ela ficou toda coberta de terra, a coisa que ela mais odiava. Ouvi dizer que o pai, quando viu que ela tava cheia de terra, tentou tirar ela do lugar na hora, desesperado. E depois gritou pra tirarem ela, gritava que ela não gostava, queera pra tirarem ela de lá. E também não deixou ela ser enterrada, não. Foram cremadas, as duas. Agora ele se mudou daqui. Não sabem pra onde ele foi, não. Deve estar muito abalado ainda. Eu tenho muita pena dele. Olha, a chuva diminuiu. Eu vou andando.

Até.

Até!