17 de abril de 2008

Veneza

Seria nossa primeira grande viagem juntos desde que começamos a namorar. E deveria ser a mais empolgante de nossas vidas. Digo deveria não porque não tenha sido, mas porque os sentimentos que circundaram os passeios, durante aqueles dias, modificaram um pouco a idéia principal da viagem.

Era algo que tínhamos em comum. O destino preferido. Nas conversas do tempo do colégio, muitos ficavam comparando as vantagens de cada lugar. Roma, Berlin, Paris, Londres, seus pontos turísticos, o clima, o idioma, as pessoas. Eu nunca pensei duas vezes. Veneza era minha paixão.

Quando finalmente aconteceu, um efeito não foi previsto. Enquanto você admirava arquitetura da cidade, eu preferia o brilho de uns olhos vislumbrados e exuberantes de felicidade. Enquanto você atentava para os adornos e a decoração da Catedral de São Marcos, que eu tanto havia especulado, eu estudava suas feições satisfeitas ao olhar cada detalhe. Enquanto estávamos sobre a Ponte de Rialto e você olhava o horizonte, eu só podia olhar para o lado e sentir um imenso prazer em ver seu contentamento. A cidade e os passeios ficaram em segundo plano.

Posso afirmar convicto que fiquei realizado com a viagem dos meus sonhos. Mas para mim o espetáculo foi outro.

15 de abril de 2008

Pausa

Como quando a gente gosta muito de uma roupa mas não consegue tirar uma mancha. Ele não esperava que por isso não fosse continuar usando.

É complexo lidar com seres humanos, eu sempre achei. Mas às vezes acontece essa auto-redução a matrizes muito simples.

Foi quando, pela primeira vez, não foi admoestado, que ele se resolveu. Não que isso resolva com qualquer um, mas já é interessante que funcione assim com alguém, uma pessoa que seja. Basicamente foi uma queda, longa e penosa. Sentir que alguém que sempre estava ali, ao lado, disposto e preocupado, desistiu de você. Um ponto: o egoísmo desse sentimento não era insconsciente, mas não é isso que é pra ser discutido agora.

Sempre tendia a descrever essas sensações de desespero, angústia e falta como espasmos, compressões e orgias entre seus órgãos internos. Vísceras em agonia. Dessa vez era só oco. Uma falta de tudo. Aliás, havia luz. Uma luz inexpressiva, enigmática.

Descobriu que não havia maior desgosto que não ouvir a música que deve vir com o silêncio.

8 de abril de 2008

Fissão

A primeira coisa que reparei foi a boca. Sempre achei bocas mais expressivas que olhos. Reparava no seu formato, e nos formatos que assumia. E como ela se mexia. Com o sorriso, a mastigação, a dicção, e até os movimentos supostamente sem propósito. E o queixo, que é meu particular fascínio. Depois, os olhos. A cor, que tantos outros têm igual, era única. A vivacidade e a jovialidade, ou a preguiça e a ressaca expressa neles. Os cílios, as sobrancelhas e suas texturas. Podem rir de mim, mas até o branco dos seus olhos eram especiais.

Quando tudo começa a ficar tão perfeito assim a sensatez já se foi.

Acabei com o rosto. As máscaras. As bochechas, as orelhas, o nariz, o cabelo, a nuca, e todas as combinações expressivas. E as aparências. E as fotografias. A voz, o vocabulário. E as opiniões. Daí as mãos. Braço e antebraço. E explicações. Os dedos, as unhas, as linhas, as articulações. Os movimentos, os rápidos e os lentos. E tudo que tocava. As depreciações e as apreciações. As palmas e os estalos. As aprovações, as posições. E então o andar. E as disposições. E as pernas, o dobrar dos joelhos, os ombros, a cintura, o bumbum e tudo o mais que há de bom. E os gostos, e as tensões. E as intenções. E o vestir. E as ações e as preparações.

E o existir.

Estranho quando se toma liberdade de fazer planos pra outra pessoa. Há quem diga que o amor é egoísta, e que não enxerga deformidades, e mil teorias mais.

Às vezes me pergunto se um diagnóstico precoce evitaria alguma coisa. Ou se alguma coisa só se evita quando realmente não há tanto potencial. Mas pra quê sensatez?

Eu acho que o amor é cego, sim. Aliás, acho que o amor deve ser cego.